Autor:Marcos Bazzana Delgado
Especialista em Segurança
Pública
Bacharel em Ciências Jurídicas
A tentativa de alguns
parlamentares em reger por meio de lei nacional as atividades, carreiras,
estruturas administrativas, denominações, cor de uniforme e tudo o mais que for
possível em relação às Guardas Municipais, a mim aparenta um modelo contrário à
autonomia política e administrativa criada na Constituição Federal para os
entes da Federação, senão, vejamos o que explica alguns conceitos sobre
federação, autonomia política e
administrativa:
A Autonomia dos Entes
Federativos
O federalismo no Brasil é
formado por quatro entes, e são eles a União, os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios.
Quando falamos em
autonomia dos entes federativos, falamos em repartição de competências
legislativas, administrativas e tributárias.
O princípio que norteia esta
repartição é o da predominância do interesse, este princípio expressa
nitidamente que cada estado possui seus interesses e se manifesta da seguinte
maneira:
- nos assuntos gerais predomina
o interesse da União;
- nos assuntos regionais os
Estados-Membros;
- nos assuntos locais os
Municípios e;
- nos assuntos regionais e
locais o Distrito Federal.
O legislador constituinte
estabeleceu alguns pontos básicos para o critério de repartição de competências
administrativas e legislativas sendo estes a reserva de campos específicos de
competência administrativa e legislativa:
- União, poderes enumerados;
- Estados, poderes
remanescentes;
- Município, poderes enumerados.
Em síntese cada ente possui suas
competências, não podendo um invadir a alçada do outro, para que não aja assim
a inconstitucionalidade dos atos de cada um destes entes.
Não podemos esquecer que os
entes federados também possuem autonomias. Não há hierarquia entre os entres
federados. Assim, não há hierarquia entre União, Estados e Municípios.
Portanto, para realizar o que é de sua competência, o Municio não está
subordinado nem ao Estado nem à União.
Aos entes federados a
Constituição reserva uma autonomia, maior ou menor, conforme o pacto, o que
lhes permite atuar com certa liberdade dentro dos padrões definidos na Carta
Política.
Dizer que o Brasil é uma
República Federativa significa reconhecer e proclamar a autonomia dos entes
formadores da Nação.
Tal autonomia tem inúmeras
consequências e implicações, mas a mais elementar delas é o reconhecimento de
que cada Estado-membro regula e disciplina, por lei própria, sua respectiva
administração. Cabe exclusivamente a cada Estado-membro dispor sobre a organização
e o funcionamento de sua estrutura administrativa, de seus órgãos e de suas
entidades, bem como instituir suas fontes de custeio, dispondo da legislação
fiscal.
A federação é um princípio
fundamental na Constituição brasileira.
Tem-se autonomia como a
faculdade conferida ou reconhecida a uma entidade de criar as suas próprias
normas. Daí o entendimento mais comumente aceito no direito de constituir
autonomia a capacidade política de uma entidade para governar-se a si mesma
segundo leis próprias, criadas em esfera de competência definida por um poder
soberano.
A autonomia das entidades
federadas configura-se pela garantia de auto-organização, de autogoverno e de
autoadministração de todas elas.
A autonomia das entidades
federativas deve ser preservada, sob pena de vermos comprometida a própria
estrutura da federação, mas sem desconsiderar que o limite dessa mesma
autonomia encontra-se estampado no texto constitucional.
Na Constituição brasileira de
1988 os municípios foram elevados ao patamar de Entes Federados. No entanto a
falta de atenção faz com que alguns legisladores, e na prática alguns
administradores, deixem de observar essa autonomia, fazendo-o parecer ainda
como um ente subordinado à União ou ao Estado. É o quem vem acontecendo ao
observar a tentativa do Congresso Nacional de regulamentar as funções e
funcionamentos das Guardas Municipais.
De acordo com a Constituição
Federal, no seu artigo 144, parágrafo 8º, a criação de Guardas Municipais é
algo facultativo para os Municípios.
Ainda dentro dessa mesma
redação, a Constituição informa que a competência de atuação das Guardas
Municipais serão definidas conforme dispuser a lei.
E a que lei a Constituição se
refere? Lei Nacional ou Lei Municipal?
Trata-se de um dispositivo legal
bastante controverso na doutrina. Alguns pesquisadores entendem que a faculdade
de dispor sobre o funcionamento da Guarda Municipal contida na Constituição
Federal com o termo “conforme dispuser a lei” se refere ao fato da necessidade
de ser criada uma lei nacional que regulamente as atribuições, funcionamentos e
carreiras de todas as Guardas Municipais do Brasil.
Para outros, essa expressão está
relacionada à faculdade de cada município em dispor sobre a destinação da sua
Guarda Municipal – respeitados os limites constitucionais; definindo o seu
funcionamento; sua carreira e sua imagem (uniformes, denominações etc.).
O fato é que em cada município a
Guarda Municipal atua da forma que rege a legislação local. Algumas portam arma
de fogo, outras, mesmo possuindo autorização legal, optaram por não portar (ex.
GM do Rio de Janeiro). A grande maioria adotou o azul marinho como cor do
uniforme. Existem as mais variadas denominações para os cargos, e as mais variadas
carreiras.
Quanto às atribuições, estas
também variam de município para município – ex: atuação na fiscalização no
transito; fiscalização do comércio das vias públicas; proteção das pessoas;
proteção ambiental; defesa civil; fiscalização da lei do silêncio, mediação de
conflitos etc.
Por conta de todas essas
variações, a nós nos parece que o termo “como dispuser a lei” está sendo melhor
aproveitado na autonomia de cada município em legislar sobre a função e a
atribuição de cada guarda municipal voltada para o atendimento das necessidades
locais.
Toda Guarda Municipal faze parte
de um ente federado - o município; portanto cabe a este decidir sobre sua
criação, extinção, funcionamento, carreira, funções, competências de atuação –
desde que não desrespeite as demais competências dos outros entes federados –
cor do uniforme, denominações dos cargos etc.
Por que não tentaram fazer um
“marco regulatório” com as instituições policiais mais antigas? Por que não
houve uma tentativa de regulamentar as polícias civis e militares?
Não houve qualquer tentativa
porque nesse caso respeitaram o pacto federativo, não enxergaram os Estados
como unidade subordinada do nosso sistema federado. Enxergar o município como
subordinado parte de uma visão antiga, anterior à Constituição brasileira de
1988, e que vem se mantendo assim até hoje.
O Projeto de Lei 1332, já
aprovado na Câmara dos Deputados, tenta recriar essa subordinação, parte dela
fazendo com que a Guardas Municipais (portanto, dos Municípios) se sujeite às
regras nacionais, e mais uma parte, resultante da subordinação que pretende
submetê-las ao crivo do Ministério da Justiça.
Vejamos abaixo alguns - apenas
alguns - exemplos de tentativas de invasão de competência da União na autonomia
administrativa e política dos municípios por meio de regulamentação das Guardas
Municipais, com nossos grifos e comentários sobre os casos de aparente
intervenção indevida de um ente federativo sobre o outro:
Art. 1º Esta Lei institui
normas gerais para as guardas municipais, disciplinando o § 8º do art.
144 da Constituição Federal (normas gerais aparentam retirar dos
municípios a autonomia para regular situações não previstas na legislação
nacional).
Art. 5° São competências
específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos
órgãos federais e estaduais: (todas as competências elencadas nos
parágrafos deste artigo podem ser criadas a partir de lei municipal, e fazê-las
de forma taxativa em legislação nacional pode criar um limite antes não
existentes aos entes municipais)
Art. 6° O Município pode
criar, por lei, sua guarda municipal (desde a criação da
Constituição brasileira 1988 os municípios sempre tiveram essa prerrogativa).
Parágrafo único. A guarda
municipal é subordinada ao chefe do Poder Executivo municipal (a quem
mais seria?).
Art. 7° As guardas
municipais não poderão ter efetivo superior a: ... (não
encontramos qualquer impedimento de ordem técnica, orçamentária ou de âmbito de
segurança nacional que justifique tal limitação – segundo alguns teóricos,
quanto mais agentes de segurança nas ruas, mais seguras elas ficam).
Art. 9° A guarda municipal é formada por servidores públicos integrantes
de Carreira única e plano de cargos e salários, conforme disposto
em lei municipal(trata-se de intromissão mais do que indevida, ou até um
desrespeito não justificado, querer dizer que o município não terá autonomia
para estipular a forma de provimento de cada cargo, ou de cada nível na
carreira, junto à sua instituição guarda municipal) .
Art. 11. O exercício das
atribuições dos cargos da guarda municipal requer capacitação
específica, com matriz curricular compatível com suas atividades.
Parágrafo único. Para fins do
disposto no caput, poderá ser adaptada a matriz curricular nacional
para formação em segurança pública, elaborada pela Secretaria Nacional de
Segurança Pública - SENASP do Ministério da Justiça.(ora, se um
município desejar criar uma guarda municipal apenas para atuação na
fiscalização do trânsito, ou portaria de repartições públicas com atuação
desarmada, nada justificaria ter que se submeter a regras nacionais, em
especial a normas decorrentes de matriz curricular)
Art. 12. É facultada ao
Município a criação de órgão de formação, treinamento e aperfeiçoamento dos integrantes
da guarda municipal, tendo como princípios norteadores os mencionados no art.
3°.
§ 1º Os Municípios poderão firmar
convênios ou consorciar-se, visando ao atendimento do disposto no caput deste
artigo.
§ 2º O Estado
poderá, mediante convênio com os Municípios interessados, manter órgão
de formação e aperfeiçoamento centralizado, em cujo conselho gestor seja
assegurada a participação dos Municípios conveniados.
§ 3º O órgão referido
no § 2º não pode ser o mesmo destinado à formação, treinamento ou
aperfeiçoamento de forças militares (não encontramos aqui qualquer
justificativa técnica para criar-se tal impedimento – se for da vontade do
município, por meio de convênio, formar uma guarda em uma academia da polícia
militar – as quais em seus currículos de formação não ensinam nada de nocivo à
nação ou à população – há que se respeitar essa vontade do executivo municipal).
Art. 13. O
funcionamento das guardas municipais será acompanhado por órgãos próprios,
permanentes, autônomos e com atribuições de fiscalização, investigação e
auditoria, mediante:
I — controle
interno, exercido por corregedoria, naquelas com efetivo superior a 50
(cinquenta) servidores da guarda e em todas as que utilizam arma de fogo, para
apurar as infrações disciplinares atribuídas aos integrantes de seu quadro;
e
§ 1º O Poder Executivo
municipal poderá criar órgão colegiado para exercer o
controle social das atividades de segurança do Município, analisar a alocação e
aplicação dos recursos públicos, monitorar os objetivos e metas da política
municipal de segurança e, posteriormente, a adequação e eventual necessidade de
adaptação das medidas adotadas face aos resultados obtidos.
§ 2º Os
corregedores e ouvidores terão mandato cuja perda será decidida pela maioria
absoluta da Câmara Municipal, fundada em razão relevante e específica
prevista em lei municipal.
Art. 14. Para efeito do
disposto no inciso I do caput do art. 13, a guarda municipal
terá código de conduta próprio, conforme dispuser lei municipal.
Parágrafo único. As
guardas municipais não podem ficar sujeitas a regulamentos disciplinares de natureza
militar.
Art. 15. Os cargos em comissão das guardas municipais deverão ser providos por membros efetivos do quadro de Carreira do órgão ou entidade (mais uma intromissão na forma de provimento de cargos públicos municipais).
§ 2º Para ocupação dos cargos
em todos os níveis da Carreira da Guarda Municipal,deverá ser observado o
percentual mínimo para o sexo feminino (poderia aqui, se desejasse, inovar ao
criar as vagas nos mesmos moldes da Polícia Civil de São Paulo, onde não há
divisão de cada vaga entre masculino e feminino – a mesma vaga serve tanto a um
quanto ao outro gênero – assume a vaga quem melhor se classifica),
definido em lei municipal.
Art. 16. Aos guardas
municipais é autorizado o porte de arma de fogo,conforme previsto em lei (se
já admite o pretenso legislador deste ordenamento que há uma lei prevendo o
porte de arma de fogo, para que dizer o que já está dito? – esse tipo de artigo
evidencia uma total falta de experiência no assunto em que se aventura a
tratar).
Art. 21. As
guardas municipais utilizarão uniforme e equipamentos padronizados,
preferencialmente, na cor azul-marinho.
Observem que em alguns casos
usa-se o termo “deverão”, noutros “poderão”,
noutro “é facultado”, e assim por diante. São esses termos um
tipo de mandamento, um limite ou em alguns casos um mandamento a ser seguido
pelos municípios em assuntos que até então eram de sua livre autonomia para
decidir.
Não coaduno com medidas que
tentem retroagir as conquistas dos municípios no que tange a autonomia política
e administrativa. Acredito que devemos avançar cada vez mais, porque ainda
existem as submissões veladas, ora perante os Estados, ora perante a União, e a
maioria delas se revelam por meio da dependência financeira, onde os entes com
menos receita se sujeitam à vontade política e se submetem a outros entes
federados em troca de empréstimos ou doações.
Não adianta apenas avançar me
termos de legislação constitucional. Há que se conquistar na prática, e há que
se impedir tentativas como essa trazidas no PL 1332 de tornar os municípios
novamente subordinados aos Estados e à União.
Referências:
Fonte: Os
Municipais